No dia 24 de novembro o espetáculo REI DUAS VEZES estreará como previsto. A maioria das pessoas que trabalha n’ O TEATRÃO optou por não fazer greve. A OMT abrirá as portas como normalmente.
REI DUAS VEZES trata precisamente das diferentes razões para sair ou não sair para a rua, em manifestação a favor de ou contra o estado das coisas. A partir de uma situação absurda, as personagens desta peça são forçadas a tomar posições públicas. A peça foi pensada para problematizar – de uma forma artística – o impasse que se vive em Portugal acerca da participação política, e as dúvidas de todos acerca da bondade do processo eleitoral, do parlamentarismo, da imprensa, da justiça, das manifestações, dos partidos e dos sindicatos.
A quota-parte de soberania individual transferida para o Estado e para a União Europeia, e que esperávamos ver devolvida em direitos de cidadania, tem sido desbaratada e posta a serviço de interesses alheios pelos governantes e pelos cidadãos.
Ou talvez não. A peça REI DUAS VEZES trata desse desbaratar e do seu contrário. Um grupo de adolescentes, enfadado com a comida da feira medieval, resolve comprar fast-food e ir comer para um lugar fresco, no caso a igreja onde está o túmulo do primeiro rei português. O rei acorda com o barulho e o cheiro da comida. Confrontados com o regresso de tal personagem histórico, o sacristão que encarna o rei na feira medieval e uma repórter que assegura o exclusivo da reportagem vão tentar tirar partido da situação. Os jovens também. REI DUAS VEZES é uma farsa em que umas personagens querem manifestar-se publicamente e outras não, umas em benefício pessoal, outras em benefício de todos.
A coincidência do dia da greve geral com a data de estreia permitirá pôr em contraste a realidade e a fábula. A nossa esperança é que as pessoas que fazem greve, ou que estão solidárias com a greve, aproveitem a estreia de um espetáculo com estas características e se dirijam à OMT para assistir à peça e, deste modo, continuar o protesto, o debate e a reflexão. As pessoas que estão contra a greve também. O país pode ver-se ao espelho.
O corte de 40% nos apoios do Estado às atividades culturais, muito maior que o corte na educação, na saúde e na administração pública em geral, seria razão mais do que suficiente para protestar diretamente.
O TEATRÃO, na OMT, cumpre as funções de uma companhia de teatro regional, oferecendo espetáculos de teatro originais, produzidos localmente; cumpre as funções de uma sala de espetáculos municipal, oferecendo música, dança e teatro a espectadores de toda a região; e cumpre as funções de um centro educativo artístico local, oferecendo formação diária em teatro e expressão dramática a centenas de pessoas. Estas funções decorrem dos direitos garantidos pela Constituição, um contrato de soberania estabelecido entre todos os cidadãos que depende da boa-fé das partes e se efetiva (ou não) diariamente. O desempenho dessas funções só é possível com o esforço diário dos profissionais d’O TEATRÃO, que excede em muito a compensação contratualizada com o Estado, e que é feito em nome de uma ideia de comunidade, de uma ideia de cidade, de uma ideia de país, de uma ideia de Europa, e da ambição de sermos, público e artistas, cidadãos do mundo, como se identificou Socrátes, o filósofo grego. A arte é aqui apresentada como uma forma de conhecer e agir sobre o mundo, sem a qual estaríamos tão mal quanto sem saúde e sem educação. São funções do Estado, desempenhadas por uns para benefício de todos.
Embora a greve permitisse alertar para o perigo iminente do fim destas funções, o prejuízo de não fazer o espetáculo afetaria o público irreversivelmente, mas não afetaria as autoridades. Embora estejamos de acordo com os fins em nome dos quais a greve é feita, discordamos dos meios. Por isso, não faremos greve. Nada de equívocos: esta estreia não é uma forma de greve, porque nada substitui uma greve. O TEATRÃO não fará greve, nem sequer greve de zelo. Fará uma coisa diferente. Um pé na porta para exigir os direitos de todos.